20 anos do bug do milênio, 50 anos do homem na lua e nada de prontuário eletrônico

Enio Jorge Salu – Publicado em 24 de Julho de 2019

Para os mais jovens é necessário explicar: nos primórdios da informática armazenar informações era algo muito caro. Para ter noção: na faculdade utilizava um computador de “grande porte” que tinha 64 k de memória – não se engane é “k” de quilo, e não “g” de giga ou “t” de tera.

Discos eram gigantes de tamanho e preço, mas não cabia nada neles. Os mais velhos (os bem velhos) tinham que economizar em tudo que pudesse para armazenar informações – então porque guardar as datas em formato dd/mm/aaaa ? ... vamos guardar como dd/mm/aa e economizar 2 dígitos, afinal estávamos no século 20, e todos os anos começavam com 19xx. Esse era o problema chamado bug do milênio – quando chegasse ao ano 2.000 os computadores não saberiam se a data xx/xx/00 era 1.900 ou se era 2.000 e o mundo ia acabar !!!

Há 20 anos atrás, nesta época (julho) eu cuidava da TI de um grande hospital, e minha equipe (fantástica) não precisou gastar 1 centavo com as consultorias que queriam cobrar os olhos da cara para dizer para nós o que sabíamos que deveríamos fazer. E nada aconteceu – na verdade nada aconteceu em quase lugar nenhum – o bug só serviu para engordar a conta de algumas consultorias que sobrevivem do medo que colocam nos seus clientes !

Engraçado ... meu chefe na época estava com medo e queria contratar uma consultoria ... foi a primeira e única vez na minha vida que tive que brigar com meu chefe para não gastar dinheiro ... e olha que ele era um típico pão-duro !!

Na época do bug, quando a gente varria qualquer tipo de problema que qualquer tipo de programa podia dar, eu imaginava como a Nasa, 30 anos antes do ano 2.000, tinha conseguido enviar homens para a Lua. Com computadores e softwares 30 anos mais antigos ... movidos à lamparina ... hoje, 20 anos depois, todo mundo diz que na época do bug os computadores eram movidos à lamparina !!!

Por mais romântico ou amador que esta época pode ter sido tenho muito orgulho de lembrar dela, e de todas as pessoas que trabalhavam comigo naquele hospital ... com nada construímos o primeiro portal em padrão web de informações de pacientes, fomos os primeiros a disponibilizar laudos de exames na Internet, os primeiros a distribuir o sistema de atendimento de pacientes de forma remota, a interligar diversos sistemas de SADT antes do padrão DICOM, o primeiro sistema hospitalar que tinha contas de pacientes carregadas em tempo real, e uma série de outras coisas que renderam uma série de prêmios para nós na mídia especializada e na imprensa comum.

Tenho tanto orgulho daquela época como vergonha da época atual: com todos os recursos que a TI tem hoje, a população ainda não conta com prontuário eletrônico.

Cada empresa tem o seu, cada prontuário eletrônico tem apenas uma pequena parcela da vida do paciente, mas o maior interessado (o paciente) não tem seu prontuário real em meio eletrônico ... apenas fragmentos, pedaços, lampejos de alguns instantes da sua vida espalhados por uma infinidade de sistemas, bases de dados e aplicativos que não se comunicam ... estamos em 2019 – 20 anos após o bug e 50 anos após o homem na Lua ... que vergonha !

Todo hospital que conheço diz que possui o melhor sistema e o melhor processo que existe de compilação dos dados do paciente – o meu é bom, o dos outros é ruim, por isso se ele quiser passar os dados dele pra mim eu aceito, mas eu passar os meus dados para ele, de jeito nenhum.

Então, cada vez que você vai a um novo hospital, pronto socorro, ambulatório ou SADT sua vida começa do zero no prontuário deles. Você tem que contar sua vida de novo, fazer até exame de tipagem de sangue de novo (como se seu sangue pudesse mudar de grupo ABO ao longo do tempo), dizer o nome da sua mãe e do seu pai de novo, dizer sua data de nascimento de novo (como se você pudesse trocar a data de nascimento a cada novo atendimento médico). Nada do que aconteceu com você no passado existe no prontuário do novo serviço que está lhe acolhendo ... uma vergonha.

Várias operadoras que conheço dizem que possuem o prontuário dos seus beneficiários. Todas elas nem mesmo em 100 % da sua rede própria tem um único prontuário ... quando tem recursos credenciados (não próprios) nada de integração. E vamos lembrar que o tempo médio de permanência de um beneficiário em uma operadora não chega a 6 anos ... ou seja ... em média a cada 6 anos seu prontuário desaparece e começa tudo de novo ... uma vergonha.

Todos os hospitais públicos que conheço que tem sistema de prontuário eletrônico (a maioria nem sonha em ter ainda, por incrível que pareça), não se integram com os demais. Mesmo aqui na Cidade de São Paulo (a mais rica) ou no Estado de São Paulo (o mais rico) se você passa por uma UBS e depois é referenciado para continuar seu tratamento em um hospital, sua vida começa do zero no PEP do hospital, e quando você volta para a UBS ninguém sabe o que aconteceu com você lá. Se a referência for para uma Santa Casa então, nem se fala ... uma vergonha.

Outro dia participei de um evento sobre telemedicina ... decepção ... pessoas falando de teleatendimento como se isso fosse telemedicina ... pessoas dizendo que a lei que foi publicada e revogada foi um avanço – é ... a lei que sugere que as consultas remotas devem ser filmadas por segurança.

Ao invés de se discutir a quebra de travas para implantar o PEP real, ficam discutindo padrões e requisitos que só dificultam o avanço ... sabe ... o médico que fala comigo (pelo ar) pode falar o que quiser, de graça, mas se quiser me mandar algo pelo WhatsApp ou prescrever algo eletronicamente para mim precisa de um certificado digital que custa os olhos da cara, e se adaptar ao padrão XPTO regulado pela associação Tabajara que entende do assunto.

Estamos em 2019 e o governo não sabe quem tomou vacina contra tuberculose !!!

O melhor controle que a 7ª ou 8ª economia do mundo tem ainda é carimbar um papel chamado de carteira de vacinação. Se você viajou um dia e apresentou o comprovante da vacina de febre amarela, quando viajar de novo vai ter que apresentar o papelzinho de novo, ou tomar de novo a vacina (que não tem para todo mundo) só para conseguir o papelzinho ... uma vergonha.

20 anos após o bug ... 50 anos após o homem na lua ... e nada de PEP real – só fragmentos ... UMA VERGONHA.