Judicialização da Saúde no Brasil - Ruim com ela, Pior sem ela
Enio Jorge Salu – Publicado em 18 de Novembro de 2019
Ninguém gostaria que isso estivesse acontecendo: boa parte do destino dos recursos da saúde estarem sendo definidos em tribunais, e não no âmbito técnico da área da saúde !
Quando algum jovem me interpela, devido minha experiência na área, sobre qual a carreira mais promissora na área da saúde, não tenho a menor dúvida em afirmar: se estiver pensando na vocação de ajudar a população faça o que seu coração manda: medicina, enfermagem, fisio ... mas se estiver pensando em ter um bom padrão de vida, faça o que manda a razão: Direito !
A ilustração abaixo, do Relatório de Judicialização da Saúde do Insper, mostra a evolução do número de processos de saúde distribuídos por ano na primeira instância.
É assustador.
Difícil imaginar que alguém possa gostar do ponto que chegamos – talvez advogados, cuja profissão é a de defender o interesse dos seus clientes. Digo talvez, porque a evolução é tão elevada que não consigo avaliar se até eles realmente aprovam este cenário.
A evolução é ainda mais assustadora quando recorremos ao mesmo relatório para avaliar a evolução na segunda instância:
É ainda mais proeminente !
E demonstra que a judicialização não é algo sem sentido. Se fosse, a história demonstraria um volume insignificante na segunda instância, que é quando se recorre de uma decisão na primeira: se tem gente recorrendo é porque a chance de ganhar a causa é grande !
Judicialização fere especialmente o planejamento orçamentário do SUS e da Saúde Suplementar: quando o processo vinga o recurso é empenhado fora do que havia sido planejado – como o recurso é limitado nos dois sistemas, de uma forma ou de outra, em maior ou menor escala, vai faltar dinheiro para empenhar naquilo que havia sido planejado.
Há anos tenho ouvido pessoas criticando a judicialização, mas como tudo na vida, sempre existe o outro lado da moeda – a face que não vemos, ou que não queremos ver.
Uma outra ilustração do mesmo relatório ajuda a entender algumas coisas importantes sobre judicialização no Brasil:
Os dois maiores assuntos têm a ver com planos de saúde ... será que poderia ser diferente ?
A constituição define que saúde é livre à inciativa privada ... a mesma constituição que define que telecomunicações e transporte é exclusividade do estado.
Por isso quem vende linha telefônica é concessionária, e empresas de ônibus são permissionárias ... é o governo “terceirizando” sua responsabilidade.
Na saúde não ... operadora de planos de saúde, serviços de saúde ... são empresas livres – não são concessionárias, permissionárias, consorciadas ...
Mas no Brasil temos agências reguladoras (ANATEL, ANEEL ... ANS) agindo praticamente da mesma forma ... isso nunca vai dar certo ... a ANS não tem o mesmo poder de fogo em relação às Operadoras de Planos de Saúde que tem a ANATEL em relação às Operadoras de Telefonia ... isso é constitucional !!!!
Então, a regulação age como se a Operadora de Planos de Saúde tivesse responsabilidade sobre a saúde pública ... não tem ... e quem tem (o SUS) não cumpre 1 % das regras que a operadora de planos de saúde tem que cumprir.
O resultado é este: os campeões de audiência da judicialização são operadoras de planos de saúde. A razão fundamental é a existência do Rol da ANS. Como pode uma empresa ter responsabilidade sobre a saúde dos seus clientes, dentro um limite, seja ele qual for ? ... saúde não tem limite ... o limite da saúde é a vida !
Temos na ilustração, no sexto lugar, o fornecimento de medicamentos. São 3 razões básicas:
· O processo de incorporação de um novo medicamento no Brasil é lento. Drogas que passaram anos para serem aprovadas, por exemplo, nos Estados Unidos, vão ter que passar mais anos para serem liberadas aqui. Tem algo que serve para salvar uma vida sendo usado lá, mas aqui não pode porque ainda não tem registro. Já tive aulas com professores de ilibada reputação que afirmam que o processo de registro poderia ser diferente;
· Não existe recurso financeiro para comprar todos os medicamentos que a população necessita, nem no SUS, nem na Saúde Suplementar. Então a fonte pagadora naturalmente prioriza a compra dentro de parâmetros que privilegiam a maior parcela possível da população, dentro do seu orçamento;
· Existem poucas políticas públicas que possibilitam a redução do preço do medicamento. Por exemplo: remédio para pressão e diabetes eram muito caros há alguns anos atrás. Quando passaram a serem distribuídos gratuitamente pelo governo, o aumento de escala de produção dos laboratórios reduziu significativamente os preços – as pessoas que não tinham condições para comprar estes medicamentos quando não eram distribuídos gratuitamente, hoje poderiam até comprar, de tão barato que ficaram !
Infelizmente, a tendência é que medicamentos naturalmente subam neste “ranking macabro da judicialização no Brasil” ...
... e a judicialização tende a continuar crescendo !
Mas olhar o outro lado da moeda: que culpa o beneficiário do SUS ou da Saúde Suplementar, e o advogado que o representa, tem em relação a tudo isso ?
Não estão lutando por questões ideológicas, gostos pessoais ... estão lutando por aquilo que é mais precioso: saúde ... vida.
O que seria das pessoas diagnosticadas com neoplasias, e o SUS ou o Plano de Saúde lhe nega um procedimento, um medicamento ... se não fosse a judicialização ?
A judicialização é grande porque os sistemas de financiamento se desenvolveram e continuam mirando na redução de custos – no Brasil temos sistemas de financiamento ... não temos sistemas de saúde.
Tenho plano de saúde desde os 21 anos de idade (tenha certeza de uma coisa ... isso significa muito tempo). Foram vários, de várias empresas ... nenhuma delas jamais se preocupou com a minha saúde:
· Nunca, em nenhuma situação, fui incluído em qualquer programa de planejamento de saúde ... minha única relação com eles foi pedir autorização para consultas, exames e procedimentos ... e pagar o boleto, é claro !
· O que tenho hoje nem sabe se eu tomei vacina contra gripe e sarampo neste ano !
· Só vão se lembrar de mim se aparecer com destaque em alguma lista de controle de sinistralidade !
Pagando o plano de saúde há tanto tempo, graças a Deus nunca tive necessidade de utilizar algo realmente caro ... quando for necessário, tenho quase certeza que meu único parceiro será a judicialização !
E se não tivesse recursos para pagar meu plano de saúde e dependesse do SUS ... a judicialização seria também minha única parceira.
Por isso, infelizmente ...
... o cenário da judicialização é péssimo ... ruim para todos nós ...
... mas se não fosse ela, o que seria de nós beneficiários do SUS e da Saúde Suplementar ?