Call Center e Vídeo Game Disfarçados de Telemedicina e de Inteligência Artificial
Com Absoluta Falta de Ética, algumas empresas se aproveitam da crise COVID-19 para desassistir clientes e reduzir custos
Enio Jorge Salu – Publicado em 08 de Abril de 2020
Infelizmente estamos presenciando mais um triste episódio de ganância por parte de algumas empresas que jamais deveriam renunciar aos princípios mínimos da qualidade na prestação de serviços na área da saúde: a ética.
Se aproveitando da ilusão das pessoas de que a telemedicina só não era praticada por questões burocráticas, aproveitam a crise do COVID-19 para cantar em verso e prosa serviços que chamam de Telemedicina e Inteligência Artificial, mas na verdade são serviços de call center e joguinhos eletrônicos camuflados.
É nítido que as pessoas que nominam projetos não sabem nem mesmo diferenciar telessaúde de telemedicina – é possível ver erros absurdos de adequação em propagandas de serviços e de aplicativos ... na minha experiência pessoal só não vi o SUS confundir as coisas, e diga-se de passagem, o SUS tem estabelecimentos e serviços de telessaúde há muito tempo, desconhecidos pela maioria, infelizmente.
Como não sabem diferenciar nem isso, é de se esperar que utilizem o termo inteligência artificial, também sem saber o que é, como propaganda enganosa.
É muito fácil perceber quando se utiliza uma estrutura de Call Center:
· Não só pelo caminho necessário para chegar ao interlocutor ... os casos em que se passa por uma infindável quantidade de etapas, digitando opções de menu, e ouvindo propagandas do portal da empresa, que se deve deixar as faturas em débito automático e outras coisas do tipo;
· Mas principalmente pelo tipo e qualidade da interlocução;
· A prática médica, do dentista, do psicólogo ... de qualquer profissional assistencial ... é norteada não só pela lógica causa e efeito, mas também pelo fato dos pacientes possuírem características personalíssimas, condições pré existentes e pela influência do ambiente social em que o paciente vive;
· O profissional assistencial vai formando o cenário não só por aquilo que pergunta, mas por aquilo que espontaneamente o paciente vai declarando, e pelo que vai observando na interação com ele;
· Se o interlocutor vai seguindo um menu de sistema que não permite registrar informações que um profissional assistencial julgaria importante para o caso, o que se compõe não é um prontuário ... é uma mera pesquisa ... uma enquete !
É isso que acontece nos tradicionais Call Centers ... só se tabulam informações que a empresa deseja ... que são úteis para cumprir requisitos de atendimento ao cliente ... não se tabula realmente o que os clientes gostariam.
Para ilustrar:
· Recentemente tive um episódio com o call center de uma empresa:
· Quando a ligação é encerrada pelo operador inicia um menu para avaliar o atendimento, mas quando a ligação é encerrada pelo cliente, evidentemente, o atendimento não é avaliado;
· Como minha interação com o operador foi péssima e ele sabia que seria mal avaliado, não desligou ... eu pedia para desligar, mas ele não desligava ... a ligação ficou ativa por mais de meia hora ... até que eu desligasse !
Isso ocorre porque Call Center geralmente é terceirizado e uma das métricas de remuneração da empresa de Call Center é a avaliação dos “usuários” no final do atendimento ... o Call Center pode nem estar muito preocupado em prestar um bom serviço, mas sempre está preocupado em cumprir as metas de avaliação ... porque “dói no bolso” !
Os chamados “aplicativos de inteligência artificial” que estão sendo disponibilizados, alguns até gratuitamente:
· Não tem nenhum elemento de inteligência artificial;
· É simplesmente um menu de perguntas e respostas, e conforme a combinação das respostas sugere determinadas ações e/ou diagnósticos ... como o “programinha do Call Center”;
· Inteligência artificial supõe que quando surge uma condição ou combinação não prevista, o sistema coleta informações para retroalimentar seus parâmetros de modo que uma nova ação possa ser formulada dentro de um processo de validação, ou seja, o próprio sistema vai “aprendendo” a se programar para situações de exceção ... este é o conceito básico de “inteligência”.
O que está sendo disponibilizado tem um efeito colateral absolutamente indesejado em medicina:
· Vai sugerindo ou formulando hipóteses diagnósticas dentro de um número limitadíssimo de questões, ignorando uma grande parcela de parâmetros necessários para a tomada de decisão adequada;
· Sem opção para informar o que deseja, e o que seria necessário para tomada de decisão, o interlocutor é classificado de forma precária e vai tomando contato com possibilidades de diagnósticos que ele nem imaginava que existisse ... e acaba tendo a impressão que tem uma doença que não tem nada a ver com o seu caso no “joguinho”.
O risco de incentivo a auto medicação é enorme ... para nem falar de outras coisas mais graves.
É muito fácil perceber quem está se aproveitando da situação:
· É oferecida a consulta que seria realizada em pronto socorro, com a justificativa de que evita a sobrecarga do sistema, e prioriza quem realmente necessita ... esta é uma justificativa bem vinda em uma situação de crise, evitando o colapso de um serviço atendendo desnecessariamente pacientes, e faltando vaga para os que necessitam ... como também reduz custos em redes próprias ... então “Pode”;
· Mas as consultas de rotina com psicólogos, monitoramento remoto de exercícios de reabilitação de fisioterapia ... tudo que é eletivo em tratamentos continuados ... não se oferece. Para conter custos nem se define preço em contratos para esta prestação deste tipo de serviços de forma remota ... então, na crise, as pessoas não podem marcar presencial e nem fazer remoto, interrompendo tratamentos ... ruim para o paciente que fica desassistido, e ruim para o profissional que fica sem serviço.
Ou seja, aquilo que envolve custo que pode ser “barrigado” pela fonte pagadora sob justificativa que agora o foco é a crise ... “Não Pode”.
Se achar que tudo isso é bobagem:
· Existe o “número mágico” para operadoras de planos de saúde que se estima ser necessário, em condições normais, 1 médico para cada 3.000 beneficiários;
· Estes médicos estão “espalhados” pela rede de atendimento em consultórios, hospitais ... a maioria em consultórios;
· Em uma central de telemedicina em um cenário de crise a relação evidentemente deve ser muito maior ... muito maior ... porque as pessoas estão mais suscetíveis à necessidade de interação com médicos ... estão com medo;
· Mesmo supondo esta relação, uma operadora de 100.000 beneficiários deveria ter uma central com 34 médicos para oferecer o serviço. Em regime de turno, com escalas, folgas ... o número é ainda maior ... para funcionar 24 horas, no mínimo o dobro.
Será que alguém acha que alguma dessas operadoras que tem feito a propaganda “troque o seu plano pelo meu que tem telemedicina” ...
... tem uma central com este número de médicos para prestar o serviço de telemedicina que está disponibilizando ?
Ou será que é um Call Center com um “programinha de inteligência artificial” e interlocutores que nunca usaram jaleco ?
Tecnologia nunca foi problema para implantação de uma telemedicina verdadeira ... as principais razões sempre foram os “cartórios digitais” e o risco que envolve flexibilidade em relação às questões éticas, que sempre ficarão em segundo plano quando envolverem custos ... exatamente isso que está acontecendo !
Já telessaúde não tem nada a ver com isso ... e por isso, o tão criticado, SUS nomina corretamente os serviços à distância que disponibiliza há anos como telessaúde ... não engana ninguém !
Junto com o apelo para que as empresas não se aproveitem da fragilidade momentânea das pessoas para agir de má fé em meio à crise, fica a recomendação para que as pessoas não se iludam:
· Não existe tecnologia que substitua o médico, dentista, o enfermeiro ... medir pressão, sentir o cheiro, apalpar, observar com muita nitidez a cor da língua, dos olhos, escutar ... estas coisas ainda não são adequadamente tratadas pelos sistemas de informação ... existem dispositivos de captura deste tipo de informação, mas não são webcams;
· Não dê crédito para aplicativos com “menuzinhos” de perguntas e respostas e sugerem diagnósticos e tratamentos ... acredite: são meros “horóscopos”;
· Os profissionais assistenciais estudam anos para adquirir discernimento sobre sinais vitais, doenças e tratamentos dentro de contextos e cenários ... não existem sistemas minimamente parametrizados para substituir estes profissionais ainda ... vai demorar muito para existir;
· Não se medique sem uma prescrição;
· Se preocupe em prestar muita atenção nos seus sintomas para informar para quem sabe o que significam, e não em aprender a diagnosticar doenças;
· Não cobre a fonte pagadora pela falta de “programinha”, portal ou aplicativo “santo” ... cobre o acesso ao profissional da área da saúde de maneira adequada ... peça que o interlocutor se identifique com CRM, CRO, nome completo ... é seu direito.
E vale lembrar que qualquer um pode fazer um formulário de enquete no Google, tabular as respostas e publicar que “cantar o hino nacional 2 vezes por dia emagrece”, justificando que a maioria dos soldados é magro ... qualquer um pode fazer isso !