Nunca Saberemos a Quantidade Real de Óbitos por COVID-19 no Brasil, e Quanto Custou para o SUS
Falta Estrutura Adequada para Tabular Informações Necessárias para Avaliar o Impacto Econômico da Pandemia
Enio Jorge Salu – Publicado em 8 de Outubro de 2020
Nos acostumamos a ver a mídia divulgar “um estudo aqui e outro ali” informando que o número de infectados e óbitos relacionado ao COVID-19 pode ser X vezes maior.
Todos os estudos merecem o devido respeito, mas sabemos que são mais “horoscopologia” do que epidemiologia ... por 2 razões fundamentais:
· As informações mais seguras da área da saúde estão relacionadas à economia da saúde;
· Nossa estrutura de comissões especializadas em análise de informações para tabulação de doenças e óbitos é muito pequena, em relação ao que deveria ser.
Sobre a tabulação de dados a partir de contas hospitalares e de outros tipos de serviços de saúde na área privada e na área pública:
· É mais rápido e seguro contabilizar o número de óbitos em contas hospitalares do que contabilizar dados de relatórios de unidades, que não sofrem penalidade se demorarem para tabular informações. Contas entregues fora do prazo têm;
· Esperar que as unidades alimentem sistemas do governo de forma adequada é perda de tempo. A maioria absoluta das instituições não tem estrutura de retaguarda administrativa para isso. E nem sempre os sistemas do governo estão disponíveis e atualizados, como vemos desde o início da pandemia.
(*) Todos os gráficos são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil – Edição 2020
Temos no Brasil 45.941 comissões especializadas que têm alguma coisa a ver com registros de diagnósticos e óbitos:
· A maioria das pessoas pensa que os médicos e enfermeiros tem como obrigação a tabulação de informações sobre doenças;
· Não podem e não devem ter esta atribuição: primeiro porque devem ter seu foco na atenção do paciente, e não em atividades burocráticas, e segundo porque, por mais que possa ser contraditório, não têm especialização adequada para isso. Classificar e tabular adequadamente doenças exige treinamento específico.
Considerando que um mesmo estabelecimento pode ter as 5 comissões, que vivemos em um país quase do tamanho da Europa, com mais de 5.400 municípios, e mais de meio milhão de serviços de saúde ... é bem fácil concluir que 45.941 comissões é um número absolutamente pequeno em relação ao que deveria existir !!!
E não podemos deixar de considerar que na área pública, que embarca a maioria deles, as pessoas que ocupam a direção das comissões:
· Nem sempre tem capacitação adequada;
· Muitas vezes ocupam o cargo por definição política ... foi cabo eleitoral do governante na última eleição e será trocado se o governante perder a próxima !
As comissões que teriam melhores condições de aferir o impacto do COVID-19 nos pacientes graves, que utilizam os serviços de saúde, são as que existem prioritariamente em hospitais:
· Controle de Infecção Hospitalar - 6.476 unidades;
· Revisão de Documentação Medica e Estatística - 2.505 unidades;
· Análise de Óbitos e Biópsias - 2.419 unidades;
· Somadas são apenas 11.400 em todo o Brasil.
E os gráficos ilustram a extrema variação Per Capita nas regiões brasileiras:
· Mesmo na de CCIH, a de regulamentação mais antiga, 4 vezes;
· E temos várias UFs com menos de 8 Comissões de Análise de Óbitos e Biópsias ... uma delas não tem uma única comissão destas !!
As comissões de Investigações Epidemiológicas e de Notificação de Doenças são as de maior capilaridade por todo o território:
· Também observamos grande variação Per Capita ( ~50 vezes em uma e ~30 vezes na outra );
· É evidente que não têm como funcionar da mesma forma ... onde a carga de serviço é maior, especialmente em tempos de “não normal” a qualidade das informações não tem como ser a mesma.
E são estruturas especializadas em coletar informações nos serviços de saúde, com diagnósticos e óbitos bem estabelecidos.
Que não é a realidade na saúde pública onde a retaguarda administrativa da maioria dos serviços de saúde é precária:
· Quando uma pessoa da retaguarda “sai de férias” não tem ninguém para fazer o serviço dele até a volta ... e temos vários afastados por estarem no grupo de risco e/ou infectados;
· E nestes serviços é uma atividade essencialmente de análise de formulários em papel ... impraticável de ser feita em regime de home office.
E também não é tão realidade assim nos serviços privados:
· Os que não se relacionam com o SUS e as Operadoras de Planos de Saúde (os que atuam na Saúde Suplementar Não Regulada) não se motivam em notificar ... não existe estrutura adequada para penalizar se não fizerem;
· E a maioria dos privados também não possui retaguarda para este tipo de coisa que podemos chamar de “estrutura dos sonhos dos gestores da saúde”. Um mesmo gestor tem diversas atribuições e esta é apenas uma delas, sendo na prática a que menos é cobrada pela mantenedora.
Este cenário se traduz de forma bem transparente para quem lida com informações epidemiológicas no Brasil:
· As informações que são tabuladas, apesar dos vieses, tem um nível de segurança razoável;
· Nosso “problema epidemiológico” se relaciona com nas informações que não são tabuladas.
Sabemos que a grande parte das informações não são tabuladas;
· Não é possível estimar sem alguma “vocação zodiacal”;
· As estruturas existentes não são minimamente adequadas para atuar de forma ativa – agem quase que exclusivamente de forma passiva, recebendo informações;
· E temos certeza de que as informações não chegam !
E em meio a tudo isso ... nem citamos o fato de que em diversas situações relacionadas à economia da saúde, não é interessante que as informações sejam tabuladas !!!
Com números incertos nunca será possível saber realmente:
· Quanto o SUS gastou com tratamentos de pacientes COVID-19 que deram certo – em que as pessoas se salvaram;
· E quanto foi gasto com tratamentos que resultaram em óbitos, parte deles cujo custo poderia ser economizado se o governo tivesse agido de forma diferente desde o início da pandemia;
· Que fique claro: governo federal, governo distrital, governos estaduais e governos municipais ... todos adotaram, adotam e vão continuar adotando ações baseadas em pressões eleitorais – infelizmente a pandemia foi escolher justamente um ano eleitoral ... se fosse outro tudo teria sido muito diferente !
Comparando com o número de óbitos em internação do SUS de 2019, em apenas 7 meses COVID-19:
· Matou ~42 % de todos os óbitos em internação de 1 ano do SUS no Brasil;
· Só no Estado de São Paulo, representa 10,4 % do total do Brasil em 2019 ... só na Cidade de São Paulo representa 4,5 % do total do Brasil em 2019.
Se comparar com os óbitos de doenças infecciosas (Cap I do CID):
· Em 7 meses no Brasil morreram 462 % mais do que no ano passado ... mais de 4 vezes em 7 meses do que em todo 2019;
· Só no Estado de São Paulo representaria 114 % no Brasil inteiro em 2019;
· Só na Cidade de São Paulo representa 50 % do total do ano passado no Brasil inteiro.
Se comparar com doenças respiratórias (Cap X do CID):
· 255 % no Brasil ... quase 3 vezes mais em 7 meses do que em todo 2019;
· 63 % somente no Estado de São Paulo
· 27 % somente na Cidade de São Paulo !
Além da desgraça das vidas perdidas, tivesse havido maior empenho em conter a expansão da doença teríamos economizado “perto de 1 SUS anual” de repasses em internações que resultaram em óbitos ... os números são indiscutíveis.
E a questão que fica é: com a estrutura que temos para notificar adequadamente demonstrada no início do texto, quanto estes números ainda estão aquém da realidade ?