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Establishment dos Escriturários em Unidades de Internação Hospitalares
0271 – 02/05/2022
Referências: Geografia Econômica da Saúde no Brasil e Jornada da Gestão em Saúde no Brasil
A Velha Questão: Se Adaptar e Evoluir “versus” Proteger Empregos em Profissões Obsoletas ?
(*) todos os gráficos e ilustrações são partes integrantes do Estudo Geografia Econômica da Saúde no Brasil e do material didático dos cursos da Jornada da Gestão em Saúde e da Escepti
Comecei a trabalhar como “office-boy” antes de completar 14 anos de idade em uma empresa que se chamava Light:
· Era a empresa de distribuição de energia elétrica em São Paulo;
· Sua sede era onde hoje se situa um shopping que, não por coincidência, se chama Shopping Light !
· Com todo o respeito ao mestre Caetano que eternizou a esquina da Ipiranga com a São João como símbolo de Sampa, talvez por não ter nascido e crescido em “Sumpaulo”, cometeu injustiça com o da Xavier x Viaduto do Chá x Praça Ramos: a encruzilhada do Teatro, do Mappin, do Vale do Anhangabaú e da Light.
Como era “proibido” contratar funcionários menores para trabalhar já nesta época, a função era “office-boy”, mas o cargo era aprendiz de arquivista – que na verdade era outra profissão, especializada em arquivar fichas em arquivos do tipo “kardex” !
Comento isso para chamar o assunto e iniciar a prosa:
· O prédio de poucos andares tinha elevadores tipo “obra de arte”, com portas sanfonadas de bronze, tapetes finos, lustres de pingentes de vidro ... uma coisa linda;
· Os elevadores (desta época) não tinham botoeiras de andares como os de hoje ... tinham uma espécie de “joystick” que dava o comando de subir e descer !
· Não tinham nem sinalizadores indicando se o elevador que parou estava subindo ou descendo;
· Então necessitávamos de um operador ... chamado ascensorista ... para operar o joystick e dizer “sobe” – “desce” ...
· ... porque se deixasse que as pessoas comandassem, ia subir ou descer desordenadamente ficando indo e voltando do térreo para o 1º andar ... além de ser perigoso, é claro.
A tecnologia dos elevadores evoluiu:
· Hoje nem tem mais a “cadeirinha” para o ascensorista se sentar;
· Não é mais necessário ascensorista !
Não é mais necessário na Light, nem em hospitais ... na verdade várias profissões que existiam na Light e nos hospitais deixaram de existir.
Na Light trabalhava no departamento jurídico e o chefe (ex-ministro Helio Helene – muito acessível para o cargo que possuía, é bom que se diga) tinha uma secretária que datilografava todas as suas correspondências:
· Boa parte dos advogados do departamento também tinha “status” para não ter que datilografar suas correspondências ... autos processuais ... rabiscavam o que queriam e passavam para as datilógrafas;
· Para quem é jovem, as “máquinas de datilografia” (ilustradas na parte de cima da figura) eram o Microsoft Word ® da época – complementadas nas empresas pelas máquinas de calcular mecânicas (o Microsoft Excel ®) da época;
· As pessoas que queriam evoluir na carreira administrativa tinham que fazer um curso de datilografia – poucos sabem o significado da sequência de letras “asdfg ASDFG”: só os que fizeram o curso de datilografia;
· A máquina da direita é do modelo que utilizei em alguns empregos – voce podia “andar” em cima do teclado que ela “aguentava o tranco” de tão forte;
· A da esquerda, menos resistente, é do modelo que meu pai comprou para incentivar os filhos a aprender datilografia ... e também porque queria um dia abrir um negócio próprio quando se aposentasse;
· Hoje praticamente não existem mais datilógrafos – mesmo os profissionais de maior graduação hierárquica produzem seus próprios documentos, porque a tecnologia avançou.
Na verdade não existe mais a figura do office-boy que existia antes:
· Minha principal atividade era levar o pacote de um processo (e era papel datilografado “pra caramba” em um processo – acredite !) da Light até o fórum da Praça João Mendes, passando pela Rua Direita ... porque o advogado não ia “carregar este peso” e fazer tarefa tão pouco nobre”
· Como todo “boy”, este percurso de alguns minutos demorava mais de hora ... por conta das paradinhas nas “lojas de discos de vinil” para ouvir as músicas que estavam nos primeiros lugares da BlackBoard e tocavam na Rádio Difusora – afinal ... “ninguém é de ferro” não é verdade ?
Que saudades deste tempo em que trabalhava o dia todo, estudava a noite, tinha aula até em sábados (para fazer provas ... coincidentemente chamadas de “sabatinas” ):
· Mas um tempo de muitas profissões como estas que não existem mais ... porque não são mais necessárias;
· Com elas foram os desenhistas técnicos (que foi uma das minhas profissões na sequência de carreira profissional), telefonistas, telegrafistas ... uma “enormidade de profissões”.
Algumas profissões que a tecnologia tornou desnecessárias “resistem bravamente”:
· Cobrador de ônibus, como se chama em São Paulo ... o trocador no Rio de Janeiro;
· Sempre que algum projeto prevê a sua extinção, um movimento sindical perigoso para a eleição do político “mica”;
· E um espaço no ônibus que poderia dar mais lugares aos passageiros ... mais conforto para se deslocar dentro do ônibus ... fica ocupado por um profissional que não necessitamos mais;
· Pagamos mais no preço da passagem para que alguém faça algo que não necessitamos ... boa parte, diga-se de passagem, de pessoas que não costumam ser, vamos dizer assim, “as mais amigáveis do mundo” quando e gente necessita de uma informação !
· A tecnologia “sempre briga” com o que chamamos de “establishment”;
· Os interesses atuais que reagem rápida, e muitas vezes violentamente, à necessidade de adaptação ... aos novos tempos !
Para quem teve a oportunidade de conhecer mais de 200 hospitais em atividades profissionais como eu ...
· Ô lugarzinho cheio de establishment ... haja resiliência para lidar com isso !
· Em 2022 é improvável descobrir um que não tenha um sistema informatizado de prontuário ... mas é improvável também descobrir um em que não exista prontuário em papel – mesmo que parcialmente em papel;
· Se o prontuário fosse 100 % eletrônico não teríamos office boy, datilógrafos, ascensoristas ...
· Se o prontuário é parcialmente em papel, temos a situação atual dos cobradores de ônibus ... se é que me entende !
Na década de 90 (“senta que lá vem história” de novo !) o Hospital Sírio Libanês tinha:
· Operadores de computador que rodavam relatórios (o Censo por exemplo) em determinados horários do dia para entregar para as áreas (financeiro, enfermagem ...);
· Digitadores que “pegavam” as prescrições e digitavam “na tela de faturamento” para compor as contas;
· E uma série de outras profissões que já não existem mais hoje nas próprias áreas ... um monte de “secretári@s” com nomes de cargo diferentes ... tinha digitador de laudo, oficial de protocolo de correspondência, copeiro servindo café em todos os departamentos !
Acabar com a maioria destas profissões não foi fácil ...
· Entenda ... eu “jogava bola” ... cruzava com eles na quadra alugada da Rua Rocha, no Bexiga ... quando tinha uma dividida “eles miravam do crucifixo da minha correntinha para cima” !
· Mas imagine se o Sírio tivesse como foco manter o “emprego deles” ... imagine hoje que o hospital é “gigantemente” maior do que antes se ele aguentaria os custos desta estrutura desnecessária ... é claro que não !
· Aquele grupo de gestores que tive a honra de integrar naquela época, dentro da tecnologia existente, estava empenhado em fazer tudo que era necessário para que a empresa fosse a mais sustentável possível ... muita honra de ter feito parte deste time, que naturalmente foi criticado pelas gerações futuras que ingressaram em tempos de novas tecnologias que não existiam na época – natural e compreensível !
Um dia poderia escrever uma enciclopédia inteira sobre tudo que passei quando nos tornamos o primeiro hospital do país a disponibilizar laudos de exames pela Internet ... foi um escândalo para o establishment !
O que se espera da empresa nestes casos é tentar, ao máximo possível, capacitar estas pessoas para assumirem outras profissões:
· Muitos deles, no cenário que descrevi, deixaram de ser digitadores e se tornaram analistas de suporte, analistas de sistemas ...
· Escriturários se tornaram coordenadores, gerentes e diretores em empresas e áreas que não tinham nada a ver com o que faziam na época que se preocuparam com a extinção do seu cargo;
· Ao abandonarem “a zona de conforto” que viviam, evoluíram junto com a empresa ... e fora dela;
· Outro grande orgulho que carrego ... apesar de alguns terem optado em não se adaptar, e colocarem “minhas canelas” em risco na quadra de futsal, até hoje tenho contato com alguns que viram oportunidade ao invés de risco !
O processo de formação do prontuário do paciente em hospitais é complexo:
· Envolve diversas etapas, e dezenas de profissões que “anamnesam”, “diagnosticam”, prescrevem, evoluem, “altam” ...
· Informações estruturadas e não estruturadas ... em letras, figuras, imagens e números !
E vão produzindo documentos diversos que, para serem recuperados de maneira que possam ter algum significado depois, necessitam estar armazenados adequadamente:
· Em ordem cronológica;
· E indexados em algum tipo de organizador de documentos;
· Os sistemas hospitalares ... todos que conheço, e não são poucos ... têm módulos para organizar estes documentos.
Mas acredite em mim ... em 2022 ainda temos prontuários em papel cuja organização se dá através de fichas em arquivos do tipo “kardex” ... se eu não tivesse desistido da carreira na Light teria uma chance de ser “arquivista” em hospitais ainda hoje ... “é mole” ?
E em 2022 a organização dos documentos na própria área assistencial (o posto de enfermagem) ainda é feita por um funcionário administrativo:
· Comumente chamado de escriturário;
· Porque “o advogado” (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas ...) não abrem mão “do datilógrafo” ... “do ascensorista” ... do “cobrador” !
· Como se identificar (carimbar e assinar) um documento e colocar as folhas na pastinha (se todos fizerem ao colocar já estarão em ordem cronológica) seja uma tarefa “de obrigação da administração” ... algo que “não é nobre” para um profissional da assistência.
Eu sempre “defendo” o profissional assistencial quando a administração “tenta empurrar” para ele coisas que não têm a ver com a assistência:
· Como tive a oportunidade de conhecer “as entranhas” dos processos de formação de prontuários em centenas de hospitais, sei que não devemos jamais pedir para que um profissional assistencial tire o foco da assistência;
· Mas os documentos que ele produz na atividade assistencial (prescrições, evoluções, descrições de procedimentos, diagnósticos ...) não se enquadram em “empurrar” atividades administrativas para eles;
· São documentos que os próprios conselhos exigem que eles produzam de forma adequada, se quiserem manter seu registro e continuar atuando na sua profissão !
Hoje, estimo que algo em torno da metade dos hospitais ainda briga contra o establishment dos escriturários nas unidades de internação:
· Ao invés de terem uma área de atendimento “clean” somente com profissionais assistenciais trabalhando de forma ordenada e organizada, e se responsabilizando pela qualidade do prontuário;
· Temos uma “figura administrativa” dentro do posto de enfermagem, geralmente sem carga de serviço suficiente para cobrir toda a sua jornada de trabalho, que fica “parando na loja para ouvir música entre a Light e o Tribunal” ... entende ?
· Recebe pedido do fast food para o plantonista ... ajuda a “passar a limpo” a escala da enfermagem ... e em algumas épocas do ano ajuda a fazer a declaração de imposto de renda, pagar guias sindicais ... verdadeiros datilógrafos !
O establishment reage à extinção do escriturário apontando erros no prontuário que geram glosas em contas:
· O administrador, invariavelmente, sentindo a “dor no bolso” recua;
· A pergunta que fica: queremos ter o prontuário organizado para que as contas dos convênios não sejam glosadas, ou queremos ter o prontuário organizado porque o prontuário é importante para a assistência do paciente ?
· Não é necessário ter o prontuário organizado para recuperar o histórico do paciente quando ele retorna ? ... para ter documentação adequada nos casos de intercorrências e demandas judiciais ?
O foco é não ter glosa, e somente os prontuários que passam por auditoria de contas externa têm chance de serem “decentes” ? ... todos os demais “podem ser um lixo” por que ninguém se obriga a organizar ? ... é isso que queremos ?
Se a resposta é “não” ... se o prontuário deve estar adequado independente da conta associada a ele ser auditada ... manter escriturários para fazer o que os profissionais assistenciais deveriam fazer não é uma boa escolha !
Esta foto é de um “clipe do Raulzito na Globo”:
· A música: o carimbador maluco;
· Pode hoje em dia a gente se deparar com escriturários em unidades de internação com uma gaveta cheia de carimbos de médicos, enfermeiros ... para carimbar documentos que eles não identificam para não ter glosa em contas ?
· Em 2022 a gente ver em unidades de internação reais o que era “de mentirinha” na década de 80 ... “fala sério” !
Dezenas de profissões em hospitais deixaram de ter necessidade desde que entrei para a área da saúde até hoje:
· Mas centenas de novas profissões foram criadas;
· Escriturários, ou auxiliares administrativos assistenciais ... são os cobradores, ou trocadores, de hoje em dia ainda em muitos hospitais !
E a gente não pode ser injusto comentando que o establishment das profissões em extinção só existe em hospitais na área da saúde:
· Posso dizer isso por conta das dezenas de projetos de consultorias em operadoras também ... em dezenas em clínicas e CDIs ...
· O que tem de profissão que não tem mais necessidade ... “é uma enormidade”!
· Coletor de manifestação de clientes ... bedel em recepção ... conferente de lotes de recepção de documentos que também vêm eletronicamente ... emissor de carteirinha de conveniado ... é a “farra do boi” !
Por exemplo:
· Como beneficiário, recebo “do meu convênio” quase todos os dias mensagens de que abriu uma unidade especializada em XPTO em Xiririca da Serra;
· Nunca necessitei da especialidade XPTO ainda (graças a Deus) e Xiririca da Serra para mim é “lá nos quintos dos infernos”;
· Informações mais inúteis é impossível imaginar;
· Mas ainda tem gente que trabalha lá só para encher as caixas postais dos beneficiários de modo que a gente perca a vontade de ler as mensagens que chegam dela ... e vai deletando tudo sem ler ... as vezes deleta algo importante que era apenas o que deveria ser enviado pelo canal de comunicação;
· As pessoas envolvidas na produção e distribuição destas informações desnecessárias são hoje como ascensoristas – a empresa não entende que evoluímos e quando alguém necessita de informação vai em busca dela: “apertam o botão do andar desejado”;
· Espalhando informações como “estava na moda em 2000” ... faz mais de 20 anos que isso saiu de moda ... agem como o ascensorista que fala “subindo ... descendo” para quem não quer pegar elevador !
· Estas pessoas encarecem o custo dos sistemas de financiamento da saúde, da mesma forma que o cobrador encarece o custo do transporte !
Tem uma coisa que não mudou “nem um pouquinho”:
· Nas consultorias quando a gente questiona a existência de determinados processos, cargos, funções, pessoas ...
· ... já vou colocando a mão no meu acima do meu crucifixo e encolhendo o pescoço “pra proteger a garganta” ... a chance do “contragolpe violento” ainda é grande !
· Bater de frente com o establishment continua sendo uma atividade de muita emoção (e risco) !
Esta é a velha guerra da tecnologia contra a preservação de empregos em profissões que se tornam obsoletas em qualquer segmento de mercado ... talvez na área da saúde a guerra seja “um pouco mais acirrada” !
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Sobre o autor Enio Jorge Salu
Histórico Acadêmico
· Formado em Tecnologia da Informação pela UNESP – Universidade do Estado de São Paulo
· Pós-graduação em Administração de Serviços de Saúde pela USP – Universidade de São Paulo
· Especializações em Administração Hospitalar, Epidemiologia Hospitalar e Economia e Custos em Saúde pela FGV – Fundação Getúlio Vargas
· Professor em Turmas de Pós-graduação na Faculdade Albert Einstein, Fundação Getúlio Vargas, FIA/USP, FUNDACE-FUNPEC/USP, Centro Universitário São Camilo, SENAC, CEEN/PUC-GO e Impacta
· Coordenador Adjunto do Curso de Pós-graduação em Administração Hospitalar da Fundação Unimed
Histórico Profissional
· CEO da Escepti Consultoria e Treinamento
· Pesquisador Associado e Membro do Comitê Assessor do GVSaúde – Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da EAESP da Fundação Getúlio Vargas
· Membro Efetivo da Federação Brasileira de Administradores Hospitalares
· CIO do Hospital Sírio Libanês, Diretor Comercial e de Saúde Suplementar do InCor/Fundação Zerbini, e Superintendente da Furukawa
· Diretor no Conselho de Administração da ASSESPRO-SP – Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação
· Membro do Comitê Assessor do CATI (Congresso Anual de Tecnologia da Informação) do Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da Fundação Getúlio Vargas
· Associado NCMA – National Contract Management Association
· Associado SBIS – Sociedade Brasileira de Informática em Saúde
· Autor de 12 livros pela Editora Manole, Editora Atheneu / FGV e Edições Própria
· Gerente de mais de 200 projetos em operadoras de planos de saúde, hospitais, clínicas, centros de diagnósticos, secretarias de saúde e empresas fornecedoras de produtos e serviços para a área da saúde e outros segmentos de mercado